13 julho 2005

Quando cheguei,

Fiais ardia em lume brando entregue ao estio. O sol aceso crepitava sobre as serras, consumindo o verde manso dos pinhais e as tias tinham morrido. Afinal, eu não tinha 5 anos e o Mondego já não era o rio cheio da minha infância, mas um fio de água lodoso que lambia as pedras secas.
Dobrei a curva onde as tias se sentavam, atentas ao motor do citroën do meu pai para poderem dar início à contagem decrescente dos minutos que faltavam para chegarmos. Sabiam que, logo a seguir, sairíamos os três ainda zonzos das mil curvas anteriores para cairmos nos seus braços. Agora, no lugar dos sorrisos que se abriam, havia apenas o efeito sombreado das saudades rente à berma.
Mais acima, na torre da igreja, o sino badalava as horas num estretor de altifalantes. Quando eu era pequenina, bastava-lhe vibrar no pendor do próprio som, mas hoje achei que o fazia ao desafio, que desafinava o tempo e que lhe dava, à medida que tocava, o sobressalto ampliado do seu curso inexorável. Senti-me, então, longe das tias e estupidamente crescida.
Por toda a aldeia, as casas, como eu, tinham crescido, cimentando o granito com a estupidez das cores. A das tias, por exemplo, rendera-se ao amarelo e reparei que as janelas, de alumínio, se protegiam com portadas verdes escuras e que a luz, filtrada outrora pelos véus de popelina, hesitava antes de rumar aos quartos e se alargar, viva, às paredes. Lá dentro, tudo se desabitara. O chão dos passos, as velhas camas de ferro dos seus corpos sonhadores, os lençóis do aroma a alfazema, os espelhos dos reflexos e até a salinha onde as tias recebiam as visitas para o chá das conversas e do som das colherzinhas que giravam a adoçá-las.
Quando o sol se apagou atrás das serras, adensando a escuridão, procurei a chama doce e abaulada do petróleo que as tias ateavam com um fósforo e que depois protegiam, numa redoma de vidro. Criam, assim, que os nossos sonhos seriam iluminados e que as suas sombras projectadas pelos corredores da casa, diáfanas e tremeluzentes, nos iriam parecer fadas. Pareciam mesmo e, no entanto, quando acendi o candeeiro e a luz fria do néon me revelou, não a forma abaulada da magia, mas um cubo concreto de abat-jour, as fadas desapareceram. Cedi ao desencanto e devo ter adormecido.
De manhãzinha, notei o sol de novo aceso atrás do véu de popelina. A tia Alma, em frente ao espelho, compunha a cabeleira branca e na cozinha a tia Céu cozia pão. A luz alargava-se às paredes, eu tinha 5 anos e uma esfoladela no joelho por causa de um mergulho no Mondego, tinha contado pelos dedos as oito badaladas da manhã e notado que cabiam no meu tempo e nos meus planos, tinha as minhas tias vivas e um pesadelo que contei rapidamente a toda a gente, a ver se me livrava dele
sonhei que as tias tinham morrido.
Depois, a tia Céu chamou-nos para a mesa e a tia Alma, à laia de recompensa pelo susto daquele sonho, deixou-me repetir o doce de amoras silvestres.

1 comentário:

sophia disse...
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