18 agosto 2005

Não vale

mentir, mas tudo o que sobrar para além dessa promessa pode dar-se à invenção ou converter-se à fantasia, amansar-se em água doce ou transmutar-se, pelo dom da alquimia, em amor puro
eu sei que existe
e depois também não vale
agora a pena
procurar as palavras preciosas com que as emoções se enfeitam, para quê, se as sentimos cruamente sobre a pele, única forma de saber se são ou não são autênticas, não vale fingir, pretender que os anjos mais não são do que metáforas
não são
que as suas asas são só isso, quatro letras, abertas ou fechadas, sempre pela mesma ordem
quatro letras a formar uma palavra
não vale fazer de conta que não sou, que volto a ser, que nunca fui, que tenho um nome, não vale de nada, o esforço é outro, o rumo é certo, ainda é o mesmo
o dos pássaros na estação do desembarque
a escrita é só um artifício, um passatempo, uma forma de entreter o movimento dos meus dedos,
ou não é
não vale mentir

A lápis,

retomei o fim da linha.
Não era mais do que um esboço a carvão traçado à pressa na estação do desembarque,
saio aqui
deserta ainda àquela hora da manhã e eu dando-me conta de que não tinha para onde ir
daí o lápis
daí o risco cor de cinza desenhado numa folha que pousei sobre os joelhos
saio?
não saio
um vago trilho de viagem que rumou directo ao céu antes mesmo de afinar-lhe a direcção e a folha azulando-se nas margens logo abaixo dos meus dedos, tão perto que julguei que o próprio Deus se colava à sua cor
à minha pele
o lápis transformado em aguarela e transportei o céu nas mãos.
afinal saio por aqui, quem sabe se não rumo aos pássaros?
o céu inteiro passado a tinta permanente ao meu alcance e uma linha de horizonte a entrar-me pelos olhos
pela alma
e a dizer-me para embarcar
não há fim
não há memória
agora vai