11 abril 2007

Acabei de imaginar

a minha filha
qual delas?
sentada na beira da minha cama enquanto durmo uma sesta, a sesta mais longa da minha vida, imaginei-a a pegar-me na mão, a chamar-me
mãe
e eu ainda de olhos fechados para lhe poder sentir melhor o perfume
diz querida
eu ainda de olhos fechados, já muito depois de morrer, a sentir a mão dela pousada na minha e sem poder retribuir-lhe com nada.

A sorte

é poder fechar a janela e deitar-me no escuro à tua espera.

A sorte

é poder abrir a janela, debruçar-me e saber que não dá para o mundo, que lá em baixo na rua não passam olhos a ver-me e que ninguém me espia pela calada da noite, tentando roubar-me o sentido ou apropriar-se de certas palavras que, vendo bem, nem sequer me pertencem.
A sorte é a certeza de que me abro de par em par sem pudor, deixando entrever não só o meu corpo, mas um pouco da alma de que sou feita, a sorte de me encostar ao parapeito sem que a vertigem da queda me assuste, sem ter de acenar nem sorrir às vizinhas que dividem o plasma comigo, sobretudo, sem ter de lhes ouvir os palpites ou de engolir as maldades que cospem à porta umas das outras.

Ainda tenho a receita

na minha carteira, dobrada.
Seroxat
escrito na caligrafia do mestre, a letra preta e permanente inclinada, e o meu nome
Sophia
Quando almoçámos os dois, há uns tempos atrás, falei-lhe da minha suspeita de poder andar deprimida, contei-lhe
não tenho força para fazer nada
não tenho vontade
Comemos naquele restaurante onde servem sopas de fruta, pedimos os dois o sumo do dia como já vai sendo costume, falámos da alma, de andarmos aqui à procura do mundo e da mais que evidente probabilidade de o mundo, afinal, ficar noutro sítio
para mim mais acima
e para si?
Para ele, nada.
Depois do café, fomos ao consultório e passou-me a receita
prometa que toma e depois dê-me notícias
Despedimo-nos com um abraço. Ele é alto e sinto-me sempre desconfortável quando me abraça, parece-me sempre que sobro
prometo
Mas continua dobrada na minha carteira.
Amanhã
talvez
dou-lhe notícias.

Fizemos as pazes,

ontem, comigo ainda sentada na beira da cama, subitamente aterrorizada com a imagem da minha mãe a gelar, ocorreu-me que um dia vai morrer de verdade e senti esse frio colado ao meu corpo, antecipei a sua ausência e o mundo pareceu-me vazio de repente, peguei-lhe na mão, chamei-a de novo
mãe
e ela acordou, não totalmente, mas o suficiente para me ver através da sesta da tarde e para acertar no meu nome
sophia
para me sorrir e me pedir para lhe contar uma história
uma da ana isabel
achei tanta graça! A minha mãe a pedir-me para lhe contar uma história da ana isabel como se fosse uma das minhas filhas pequenas à beira do sono da noite
era uma vez uma menina chamada ana isabel
diga que ela fazia muitos disparates, mãe, diga
A minha mãe a pedir-me uma história da ana isabel com medo, talvez, que a minha mão possa largá-la e fugir, que a minha voz possa fugir e largá-la, que me levante da beira da cama e que não volte mais ao seu quarto e muito menos ao sono da sesta
era uma vez uma menina chamada ana isabel
Que disparate tão grande andar por aí a dizer que estou há que tempos à espera que morra como se a minha mãe fosse um monstro qualquer que me encheu a infância de pesadelos e de medos
diga, mãe, diga
era uma vez uma menina que se chamava ana isabel e que fazia muiiiiiitoooos disparates
Era uma vez uma menina que se chamava Sophia e que tinha medo do escuro e da noite e do caminho esguio que a trouxera de novo para o mundo e para a vida. Era uma vez uma menina chamada Sophia que nasceu roxa e que todos pensaram que estava morta e que só respirou quando sentiu que não era exequível morrer sem tomar banhos de mar, sem provar a lua ao relento no campo, sem recriar as paisagens à sua maneira, à sua medida
era uma vez uma menina que se chamava sophia
Foi isso, fizemos as pazes, mas acabei por não lhe contar uma história da ana isabel, os olhos dela cairam no sono, tremeram um pouco e percebi que sonhavam.
Era uma vez uma menina que se chamava Sophia e que foi minha filha. Apesar de não a ter tido nos braços mais do que uns escassos minutos
- Assim que nasceste, levaram-te, estavas azul, todos pensavam que estavas morta e era urgente reanimarem-te.
Era uma vez uma menina que se chamava Sophia e que foi minha filha e que morreu assim que saiu do meu corpo.
- Nunca soube gerir essa dor, nunca soube curar o vazio que me deixaste nos braços, onde estiveste pousada apenas uns escassos minutos, até que alguém te levou para longe e para sempre, porquê?
Percebo-lhe o sono agitado, o sonho que a enche de medo e dou-lhe um beijo na testa, largo-lhe a mão devagar, saio do quarto
adeus mãe
Ainda bem que fizemos as pazes a tempo.

10 abril 2007

Hoje, quando cheguei,

nem sequer reparou na minha presença. Sentei-me na beira da cama, chamei-a
mãe
mas não se mexeu, talvez já não me conheça. Tem andado a fazer confusões nestes últimos dias, ora me chama Inês, ora Sandra, ora outro nome qualquer que nunca foi meu, talvez já não saiba que me chamo Sophia e que ando há que tempos à espera que morra.

Como se tudo

fosse solto do resto e não é. As coisas colam-se a mim e levo-as atrás.

E tu:

- Onde é que começa tudo, vai lá ver
e tenho estado a descer desde essa altura mas ainda não cheguei lá. Será que é no fundo?

Não sei

se ainda vou a tempo de salvar-me.

O mal é a medida

ser sempre o extraordinário, esse é o mal
Por isso fico aquém e nunca sou mais que comum
e um dia morro

Não tenho absolutamente

nada de novo para dizer, o espanto é esse, as frases alinham-se e é apenas por acaso quando ficam paralelas ao fio do horizonte
ao horizonte
calha sairem
sairem-me dos dedos como a pólvora dos tiros
calha sairem-me dos dedos direitinhas, mas não há absolutamente nada de extraordinário nesse enredo, as frases saem sempre direitinhas, quase sempre paralelas ao fio do horizonte
ao horizonte
preferia-as tortas, presas por fios, podiam nem sequer ter consistência, eram sem dúvida melhores sem nenhum esforço.

1 comment

anonymous said...
eu diria que não tem nenhum, mas pronto

Do interesse

que tudo isto tem ou não tem é muito difícil dizer.

É tudo uma questão de perspectiva,

claro
tudo depende de onde é que olhamos para as coisas, se fico no chão e olho para cima, é inevitável que as paredes altíssimas, lisas, me cerquem. Mas se sair para o lado de fora e subir e olhar para baixo, o círculo de arena irá parecer-me minúsculo e é provável que mais nada me aperte.
Tudo depende das palavras que escolho,
claro
tudo depende se atiro a matar ou se me poupo, pousando apenas a polpa dos dedos nas teclas como quem toca piano.

A verdade

é que me sinto cercada, como se à minha volta existissem paredes altíssimas por onde escorrego sempre que tento trepá-las, paredes altíssimas e muito lisas, tento agarrar-me, subir, mas escorregam-me as mãos, dá ideia que nunca vou ser capaz de me livrar desta arena e que os meus pés me levam em círculos a parte nenhuma.

Falta-me o chão,

ou então foi o ar que se adensou de tal forma que o respiro e me parece cimento, um bloco compacto e frio de pedra cinzenta que tento engolir e se encrava na minha garganta travando-me o folêgo, chega mesmo a parecer-me
nem sempre
que já não respiro nem tenho para onde ir.

09 abril 2007

Ultimamente,

fica parada a olhar para o vazio ou então embirra connosco, mais com a minha irmã do que comigo, é verdade, comigo intimida-se, acho que fica com medo dos meus amargos de boca, das coisas horríveis
injustas!
que digo e escrevo sobre ela e ainda bem que não sabe da missa a metade.
De vez em quando imagino-a a passear por aqui e a rever-se nas enormidades que deixo expostas para a posteridade
como se um blogue de merda tivesse prosperidade, tens cada uma
até que me pus a pensar que devia mas era pegar nessas enormidades, tirá-las daqui, uma coisa relativamente fácil que qualquer copy-paste resolve, e pespegar com elas numa revista qualquer, era muito bem feito.
Por outro lado, até eu sei que metade - ou mais de metade - destas enormidades não correspondem minimamente à verdade e que a minha mãe-personagem é massacrada por mim «até à náusea», como diria a beata, enquanto a minha mãe-de-verdade repousa incólume no lugar dos afectos.