30 abril 2008

O que é que vale

nesse caso?
como é que se aufere a qualidade da escrita?
é o dom, é o fôlego, o plágio, a paciência, a figura de estilo, a voz própria?
- A voz própria?
- Não sei.
Não sei se algum dia escrevo o romance
- Tenho a certeza que sim
não tenho a certeza de me ter estruturado para tanto.
de ter fôlego, dom, coragem, paciência.

acho que é jeito, só isso.
tenho jeito para a escrita.
até quando?

Como se cada bocado de escrita

valesse por si e não vale, sei isso tão bem!

Se algum dia vieres aqui dar

por acaso
e fores lendo o que escrevo
não tires conclusões.
aqui dentro, nada parece o que é.
a ti vejo-te de outra janela, não desta, que chega a ser pequena para nós
esta aqui
abrindo-se à escrita e aos sonhos
voando no vidro
rectangular e pequena.

não era bem isto, mas pronto.
passo ao post seguinte.

Faço o que quero

quando escrevo. vou onde quero ir, onde não quero, saio de onde estou, fico mais leve.
quando me espraio à tona do vidro, o tejo fica mais perto.
por isso ainda estou lá, contigo na margem do rio há vinte anos atrás.
talvez o princípio afinal não passe daí.
qual egipto, suméria, qual quê.
não te matei coisa nenhuma, nem sequer te vi antes na índia
- Nunca lá estive
não somos nada um ao outro,
parece.

E se eu te dissesse

que apesar dessa tua magreza, desse nada que és, ainda mexes comigo?
se te contasse que há pouco
ao almoço, quase no fim
me apeteceu dar-te um beijo na boca só para ver ao que sabia.
sabia-me a pouco
isso sei eu!
mas tinha gostado na mesma
sobretudo de termos tido outra vida
eu e tu
tu e eu
em vez de nada uma história
a constelação do amor no nosso mapa composto
não serias seguramente tão magro
e eu, provavelmente, também não seria quem sou,
- Sophia?
mas uma Vanessa da vida a definhar ao bolor.

Desculpa, Sophia,

mas afinal ficas cá.
preciso de ti à tona do vidro, não vale a pena arriscar dar-te corpo, vestir-te, emprestar-te o perfume e ainda ter de te ver a pôr rímel, bâton, essas coisas.
há dias em que és um fardo, percebes?
e, para pesos, chegam-me os meus.

29 abril 2008

Hesito se a levo

comigo amanhã.
Coitada, já sofreu tanto!

Ainda não tirei

da cabeça a ideia de um princípe à espera que eu chegue.
Mesmo que não acredites, ele espera-me algures.
Já o despojei do cavalo, dos adereços, do manto de glória e da espada, dos olhos azuis como o mar, dos cabelos, agora invento-o sem nada.
Não há expectativas, portanto.
E isso assegura-me a calma de que preciso para o descobrir.
Não será, seguramente, amanhã ao almoço, está descansada.
- O Vasquinho o teu príncipe?
Não faltava mais nada, coitado.

Ela volta,

um dia ela volta, assim como as fadas voltaram depois de me terem deixado perdida na ilha, nesses anos não convidava o Vasquinho para nada, sonhava apenas com ele
era tudo.
Já muito magro, remoendo ele também a vidinha de merda que lhe coubera em sorte, agarrado à Vanessa, ao bolor de Colares e a toda uma série de insignificâncias, um escanzeladinho de nada a dar-se ares de alquimista e eu a cair na conversa, meu deus.
A minha alma gémea, como é que é possível?
- Não é.
Levei-o para a ilha comigo e todas as noites sonhava com ele. Sonhava com ele todas as noites mesmo antes da ilha, antes de tudo, antes de o mundo ser mundo, daí a sensação de podermos ser almas gémeas, talvez, por mais absurdo que isso agora me possa parecer...
- Absurdo?
Absurdo! Isso e o resto. O almoço com vista para o rio, a Vanessa, o bolor, a facilidade com que ele desfazia as constelações e me apontava os planetas, os dois deitados na margem do tejo, a serra de sintra, o brilho nos olhos quando não eram magros, ou terão sempre sido e nunca o quis ver?

Ou isso.

Também pode ser isso.
Não escrever nada, estar à janela por estar, chamar-me Sophia e desenrolar por aí fora a minha vidinha às vizinhas
- Por falar nisso, onde é que elas andam?
- Não sei.
Nunca mais soube nada dos namoridos, da catarina, e de todas as outras que gerem vidinhas como, afinal, eu giro a minha
- Sophia, não é?
Sophia. Isso mesmo.
- Muito prazer.
Às vezes, invejo-lhe o plasma. A facilidade com que faz e desfaz considerações, amizades, a inconsistência dos traços, a fragilidade das medidas que encontra para justificar alguns dos seus actos. Invejo-lhe o tom, fútil e leve, o sentido de humor, a ignorância, o orgulho.
Eu sou muito mais pele, atrevo-me a menos.
Além disso, não sou como ela. Não gosto de expor-me ao ridículo, ao gosto dos outros, às pretensões, à inveja, às vidinhas, no fundo, que encontrei tantas vezes escorrendo da tinta, enchendo janelas, desfiando proezas, rotinas, actos caseiros sem nada de heróico, arrotando sentenças, ou despejando chavões e eu disso não gosto, sabe-me a pouco.
Já à Sophia, sabe-lhe ao suficiente para poder sustentar a sua própria vidinha.
As suas próprias proezas, rotinas ou actos caseiros, as suas sentenças, os seus chavõezinhos.
Por isso, querida, bem haja. Volte là sua vidinha que bem a merece.
- Hei-de voltar, obrigada.

Ou simplesmente voltar

à minha mãe,
que está no Brasil, imaginem!
à mãe que arrasto comigo esteja onde estiver para dentro da escrita e a quem faço maldades, porquê?
- Porquê, minha filha?
lá está ela,
afinal não sou eu.
onde quer que esteja está sempre comigo, dentro de mim, fora de mim, comigo nos braços, protege-me e ao mesmo tempo provoca-me, engorda, sei muito bem que passa a vida a comer às escondidas, abraça-me, beija-me
ainda lhe caibo nos braços
irrita-me,
velha, curvada, sempre com dores, com a caixinha dos comprimidos atrás
maravilhosa e atenta
seguramente o mais generoso dos seres
controladora
armada em vítima
que tal voltar lá?
à minha mãe sem dois lados, única, inteira, sem lhe infligir mais maldades, apenas beijos e mimo, que bom seria se conseguisse unir os dois lados das coisas
os bons e os maus
e perceber que não somos seres divididos
ou somos?

Faz-lhes bem

ficarem a arejar à tona do vidro enquanto ponho os dedos a jeito.
não é isso escrever?
pôr as palavras ao vento ao mesmo tempo que lhes invento uma rota de voo?
não sei...
nesta janela posso ser o que quero.
o que não quero que me vejam a ser.
o que sou.
escrever só por escrever.
- O teu romance vai ter de esperar.
posso abri-la, fechá-la, esconder-me atrás dos postigos, plantar flores nos beirais, inventar precipícios para a rua, debruçar-me, cair
se for caso disso e não houver tempo
talento
se for caso disso ou se sentir vontade posso atirar-me
morrer.
sempre morrer.
se fizesse uma pesquisa por verbos, seguramente
morrer
era o que apareceria mais vezes.
morrer só por morrer.
só porque sim.
pelo sabor, pelo medo
por ti.

Ontem,

foi ontem?
abri a janela, já não o fazia desde dezembro
- Este ano, o natal foi horrível, não foi?
e apeteceu-me escrever:
«todos os dias acordo e vou para a guerra»,
mas não cheguei a escrever, não assim.
hoje abri-a de novo e o que me apetece escrever já não é nada disto, ainda bem
espanto-me que continue a abrir a janela, que não é nada do que já foi,
vidro,
vidinha,
substâncias e pele
e lembro-me então que foi ontem que convidei o Vasquinho para almoçar,
- Já não nos vemos há séculos!
tenho além disso tido outras coisas com que ocupar-me.
livros, filhos, desenhos, pessoas, angústias, projectos.
sabe-me bem a liberdade de poder dispor do meu tempo, mesmo quando este passa a correr não me deixando livre para nada.
pois foi.
falei ao Vasquinho,
não ao dos sonhos, ao outro
ao magrinho
- Lembras-te? Chamavas-lhe o escanzelado de merda!
noto que me faz falta a janela, afinal faz-me falta a janela, preciso da escrita, o natal foi horrível e em dezembro chorei praticamente todos os dias.
ontem falei ao Vasquinho e sugeri-lhe um restaurante com vista para o rio.
hoje abri a janela e pus finalmente as palavras a arejar.