25 setembro 2005

As minhas tias

que se ainda fossem vivas e soubessem o que fiz com a irmã me perdoavam, acho eu, compreendiam, eu, num acesso de maldade aquela tarde a entrar pelo jardim como um veneno e a exilá-la brutalmente do amor, a despejá-la da vivenda de Benfica ao ficar subitamente saturada dos achaques, da velhice, dos enjoos que lhe subiam à garganta a ver montras em Algés e, de repente, estatelada no passeio sem mais nem menos, domingo não, domingo sim e era um estorvo de extra-sístoles na missa do meio dia, um chazinho, uma canseira escada abaixo e escada acima para velá-la à cabeceira, o pulso frágil mas teimoso, bate-pára, bate-pára, bate-bate
que parasse de uma vez e me deixasse!
eu cansada de repente do transtorno e do tempo que me escapa a pensá-la rodeada por quilómetros de capim em vez de relva, a azedar como os limões que apodrecem pelo chão, as asas turvas dos pardais em voos caducos sobre o rio, anjos de mármore pelo jardim ao deus dará de asas partidas, andorinhas esbaforidas, o lilás abrasador das buganvílias, as hortênsias moribundas rente ao muro, sorrisos murchos, dentaduras, palidez, rugas de cera derretendo ao abandono, um rectângulo de bafio, duas figueiras depenadas, ela magríssima acenando-me, a promessa
adeusinho qualquer dia venho vê-la
e a minha tia a saber perfeitamente que não vinha, nunca mais a visitava, ela que se acomodasse para morrer ou o que quisesse e que me deixasse em paz, que declinasse a meio da tarde nas cadeiras, que cedesse às extra-sístoles e ao reumático
chás de tília escada acima, escada abaixo
que esquecesse a cama larga de solteira e a luz a entrar-lhe pelo quarto de manhã e a trocasse pela enxerga de bafio e pela penumbra, o pau-santo pelo caruncho da madeira, que trocasse a solidão das noites longas de Benfica por fantasmas a rasar-lhe a cabeceira , pelo menos sempre tinha companhia, alguém que podia acudir-lhe se caísse ou chamar-lhe uma ambulância se morresse, um sobrinho se eu deixasse, já agora um tiro no peito e acabava-se com isto, o gatilho encostado ao coração, era o segundo, não custava mesmo nada e ela ainda num aceno, encostada ao portãozinho
e pareceu-me que sorria, percebia julgo eu, perdoava-me este excesso de palavras, o exílio de Benfica, o acesso de maldade, o ataque de rancor se calhar nem era isso, e então desaparecia de repente numa névoa de poeira luminosa mas devia ser a curva, só podia ser a curva, era a curva de certeza, a rua estreita alargando-se outra vez e o lar de velhos finalmente para trás, a minha tia até que enfim sem dar trabalho confinada ao patiozinho de esqueletos, ao paraíso enganador mas repousante apesar da decadência, até que enfim sem me partir o coração de a ver sozinha sem sobrinhos e sem gatos sem irmãs e sem frasquinhos de compota sem agulhas de crochet e sem bolachas no armário sem almoços ao domingo, a gaveta dos lençóis com cheiro a azedo, o periquito estrangulado na gaiola, até que enfim sem quilómetros de jardim erguendo um cerco à sua volta, outra boneca de poeira que voltaríamos a pôr noutra caixa sem lacinhos e não queria, ali ao menos poderia ficar viva até nos esquecermos dela, não estaríamos presentes para assistir à derrocada de extra-sístoles a calar-lhe o coração um dia a sério
bate-pára bate-pára pára-pára
um cortejo de sobrinhos escada acima, o médico, a malinha, a morte e a certidão pondo fim à expectativa de que fosse só um susto, um sustozinho apenas isso, não teríamos de olhar a magreza do seu corpo já sem fôlego e o pulso sem sinal, paradíssimo, de a velar a noite inteira e ela inerte, as rugas como a cera derretendo ao som do choro e a minha mãe mesmo ao meu lado muito antes do enterro
- Endoideceste! Como é que tu foste capaz de fazer isto à tua tia?
o lar de velhos finalmente já muito para além da curva, agora sim, posso dormir sem pensar na solidão da minha tia e na dor que a sua morte me provoca.

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