15 dezembro 2006

A seguir

fui almoçar com a minha mãe, ou fazer-lhe companhia, foi mais isso, pois tinha almoçado frango assado na escola - com faca e garfo. Cheguei um bocado atrasada, já estavam todos à mesa, zangados
- Ao menos podias ter avisado
como se fizesse alguma diferença não querer o peixe no forno feito pela Deolinda - não sei porquê chamo-lhe sempre Deolinda - mas é mesmo assim, as pessoas ficam zangadas por razõezinhas de nada e depois qeuixam-se.

Hoje de manhã

levei uma garrafa com néctar das fadas aos meninos da escola. Estavam todos sentados à mesa - 70! - até parecia a cantina da misericórdia, não fossem as mãos e as bocas labuzadas de frango assado e era mesmo, estavam todos sentados à mesa e quando lhes mostrei o cestinho com a carta, o envelope da história e a garrafa com néctar das fadas, arregalaram os olhos. O D. disse logo
- É néctar das fadas!
No cesto, iam também uns copinhos para poderem beber e brindar aos desejos, mas não fiquei lá para ouvir a P. contar-lhes o último capítulo.
Depois das férias, vou ter de inventar mais qualquer coisa. Pensei em ensinar-lhes a língua das fadas, vou ver se encontro um dicionário.

Às vezes

haxo-me e perco-me.
É um vício que tenho há que tempos!

14 dezembro 2006

Estou, então,

na Caparica. Há dias o mar engoliu às golfadas a areia da praia, espreito-o de um promontório de pedras e a paisagem é triste, mais triste ainda por estar com a minha mãe fechada na cadência das ondas, para cá e para lá, para cá e para lá, para cá e para lá
- Não tarda e estou enjoada,
diz ela.
Costumava passar férias na Caparica quando era miúda e hoje arrepiam-me os excessos que tornaram a pequena vila de pescadores numa anormalidade desconcertante de prédios. Chegámos a ter lá uma casa, com um pinheiro manso. Íamos de comboiozinho até à Fonte da Telha, a minha mãe era muito mais magra e muito mais divertida, em vez de nos fecharmos as duas na cadência das ondas, saltávamos para dentro da espuma, ela usava uma touca e nunca molhava os cabelos, apanhávamos algas, conquilhas, escaldões, era bom.
- Eras muito mais querida
diz ela.
Mas nem sequer é essa a questão. Não somos mais queridas só porque somos mais pequeninas ou mais inocentes, o segredo estava na mansidão do pinheiro, na sua copa redonda e frondosa - o ventre da minha mãe sempre foi liso, os braços não davam sombra
- És uma ingrata!
A grande questão é quando nos pômos a dividir: de um lado a mãe, do outro a pessoa, e nos partimos ao meio. Não há Freud que valha! Ali está ela, fechada nas ondas comigo, evocando o ventre de pinheiro manso onde me pôs a crescer e o mar liso como uma pedra. Aqui estou eu, com vontade outra vez de a morder e de a levar para o hospital de malucos.
- Nunca deste importância ao meu sacrifício!
Pois não. É precisamente o que mais me apavora, essa ideia de se ter sacrificado por mim e de agora querer que lhe pague com juros.
- Já chega. Vamos embora.

Se algum dia

tiver filhos, se algum dia tiver uma filha que a certa altura sinta vontade de me morder, também vou fazer um ar desolado. Dizem os especialistas que os padrões se repetem. Assim, é muito provável que, perante o meu desconsolo, também ela se feche comigo na cadência das ondas.

Passei a buscá-la

por volta das sete e meia, mas ainda dormia. Não tive mesmo outro remédio senão ir lá acima, ainda bem que tenho as chaves de casa, abri a porta, entrei de rompante no quarto.
- Mãe, acorde!
Esbugalhou os dois olhos, como se eu fosse uma aparição, um fantasma, um monstro que a queria comer ou, simplesmente, a mais ingrata das filhas.
- Que horas são?
- Um quarto para as oito. Levante-se e vista-se. Temos de estar no hospital antes das nove.
- Qual hospital?
- Não interessa, quando chegar, logo vê.
Puxei-lhe os cobertores para trás e arranquei-a da cama, gemeu.
- Não percebo por que é que me tratas tão mal.
Eu também não, mas ultimamente, mais do que nunca, tenho tido vontade de lhe morder, é mais forte que eu.
- Vá lá, vamos embora.
Em vinte minutos, vestiu-se e descemos as duas, mas via-a com um ar tão desolado que, em vez de me pôr a caminho do hospital, levei-a à Caparica, para vermos o mar.
- Que lindo hospital, disse a minha mãe. Afinal, foste querida.
Fechei-me com ela na cadência das ondas e ficámos as duas a olhar para o azul.

13 dezembro 2006

Hoje voltei

ao hospital de malucos e foi uma festa! Pelos vistos, o Dr. Singelo já lá não trabalha, consta que foi desterrado, e o Miguel levou-me a dar uma volta pelos quartos. Lá estavam elas, tal como as deixei há muitos meses atrás, cada uma com a sua panca e o seu ipê, lembrei-me da Catarina, que já não espreito há que tempos, o que será feito dela?, e da outra, coitada, a dos namoridos e das bonecas. O Miguel jurou-me que estão muito melhores e que até têm feito progressos, mas eu duvido, coitadas, tinham todas um ar tão apático!
A seguir fomos beber um café e contei-lhe que tenho andado em grandes mudanças.
- Ai, sim? Que interessante... E quando é que me mostra o que tem feito?
Expliquei-lhe que não era para já. Que, por enquanto, um trânsito do meu Neptuno progredido ao meu Neptuno natal me puxa para a ilusão.
- Não sabia que se interessava por astrologia
disse ele.
É normal, há montes de coisas que as pessoas não sabem.
- Mas está a pensar publicar, ou não está?
Não gosto muito que se imiscuam na minha vida real, por isso mudei de conversa.
- Olhe lá, por acaso não se arranja aqui um quartinho para a minha mãe, não?
- O quê, piorou?
- Parece que sim. Não diz coisa com coisa, há dias em que não articula um único som, fica parada a olhar para as paredes, engorda cada vez mais.
- Mas que coisa! Talvez possa pô-la no 15.
- O 15 era bom.
- Acha que pode trazê-la amanhã?
- Amanhã? É quinta-feira, não é?
- Sim, amanhã, quinta-feira, 14 de Dezembro de 2006.
- Muito bem, amanhã cá estaremos.
A seguir fui para casa.

12 dezembro 2006

No fim

todos morrem.
Já tenho título.

No fundo,

tudo o que aqui fui deixando ao longo do tempo foi isso: sementes de nada. Soluços. Curtos ensaios. Fragmentos de prosa. Traços de chumbo por onde alinhava as palavras, na maior parte das vezes para não chegar a lado nenhum.
Mas escrever não é isso.
Só isso não chega para nada.
Se fosse só isso, um blog chegava.
A ilusão de que escrever de rajada é que é bom - como se a inspiração fosse um jacto de luz, como se o dom dispensasse a depuração - é só isso. Uma ilusão de quem alimenta os seus pequenos néons como se fossem o mundo. De quem formata as palavras a quadriláteros, desenrolando a vidinha - essas sim, são vidinhas - entre quatro paredes de senso comum e só isso é tão pouco!

Insiste

que o tempo da colheita há-de chegar finalmente, não era?
Semeia.
Mas nem todos entendem. Nem toda a gente é capaz de arar um ecrã, sobrevivendo às agruras do frio, ao excesso de Verão que condensa em vapor metáforas, frutos, poentes, marés. Há estações em que o chão não dá nada, em que o coração está de pousio num descampado ao abrigo da chuva, há dias em que os olhos se inundam de luz, momentos em que secamos ao sol, mortos de sede e cansaço, nem toda a gente é capaz de arar um ecrã, hão-de convir, a maior parte despeja aqui e ali sementes de nada, mas depois não as rega, não as poda dos excessos, não lhes apara as excrescências, há quem espere que vinguem sozinhas, como se fosse possível crescer sem amparo.

Valeu a pena

ensaiá-las, tomá-las vezes sem conta nos dedos, dispará-las às cegas das teclas do computador para que acertassem no branco, para que encontrassem um rumo muito mais extenso do que os limites rectangulares de um blog ridículo.
Conta-me tudo
De vidro
A substância das letras muito mais condensada, a depuração das palavras
é isso escrever
depurar as palavras das vaidades do ego, cingi-las muito mais do que vertê-las a eito, tomar-lhes o gosto na língua, hoje sabem-me bem, finalmente consigo prová-las sem que o sabor amargue o meu peito, sem ninguém que me espreite. Mais tarde
mais logo
quando forem um livro já não me pertencem, poderão à vontade cair em olhos alheios, noutras mãos, serei eu de verdade e não mais a sophia inventada ou outra qualquer, serei eu, e não elas, seremos todas a mesma, haverá porventura quem me reconheça
tanto me faz
nunca me conformei à vidinha supostamente vazia com que me iniciei por estas paragens, por trás do plasma sou pele, sou de carne, existo muito para além do que escrevo e hoje, finalmente, consigo escrever muito para além da minha existência humana e banal, das histórias comuns de todos os dias, e ainda bem que o consigo, nem sequer por me sentir importante ou melhor do que os outros, mas pelo prazer que me dá ser capaz de o fazer.

Finalmente

o que tanto queria cumpriu-se. As palavras chegaram e jorram, é comovedor assistir à forma como se espalham. Falam da morte, como era suposto, mas também de paisagens e cores, de desejos e fadas, e algumas estão prontas. Não tarda nada e vão aparecer condensadas em livro, valeu a pena esperá-las.

11 outubro 2006

Tenho almoçado

de vez em quando com o escanzelado de merda. Coitado!, continua tão magro de ideias que chego a afligir-me. Não é por ele, é por mim, que andei anos e anos a achá-lo o maior, apesar de nunca ter tido mais de um metro e sessenta, o que para homem é pouco, por mim que passei metade da vida a sonhar dar-lhe beijos na boca e a achar que ele era assim uma espécie de cara metade, ou de alma gémea, acho que era mais isso, alma gémea, e agora, quando almoço com ele, raramente, oiço-o a ruminar coisinhas de nada naquele cérebro de caca e só penso que ainda bem que me passou. Afinal, também foi por ele que comecei a escrever este blog, na altura muito mais divertido, é verdade, mas pronto, aqui fica a prova de como se pode passar frases e frases sem dizer nada. Fazia-me falta este ócio, caraças!

A coisa mais difícil de aturar?

As birras INFINDÁVEIS dela.

Não dá

para acreditar nesta anormal!

1 comment

anonymous said...
já cá faltava!

Mesmo que

o nonsense tenha estado na origem deste blog, nunca pensei voltar a ele!
lá estás tu a fazer bluf, ó minha parva!
(e se estivesse?)

E, tu, Gonçalo?

eu?
sim, tu!
mas eu o quê, sophia?
sei lá o quê! tens cada uma!...
'dasse! já não se pode dizer nada!

Mããããeeeee!

- Filhaaaaa!...
- Por aqui?
- Pelos vistos.
- Muito bem, gosto de a ver.
- Pois eu gostava muito mais se me deixasses em paz. Tu não vês que eu não me sinto nada bem?
- Ah! Isso passa-lhe, vai ver.
- Não passa, não.
- Passa, passa...
- Não passa, não!
- Passa, sim!
- Não passa! Já te disse que não passa! Olha para mim: não vês que estou cada vez pior?
- Por acaso, não tenho nada essa impressão!...
- Isso é porque és uma insensível!
- Eu? Uma insensível? Oh mãe, isso até lhe fica mal!
- Uma insensível, sim senhora! Não vês que eu quase não me mexo?
- Mas isso é porque está gorda!
- Mau, mau... Agora estás a ser mal educada!
- Desculpe lá, só estou a querer ajudá-la! Aposto que anda outra vez a comer chocolates às escondidas. Diga lá, anda ou não anda?
- E se andar? O que é que tens a ver com isso?
- Eu? Nada, de facto! Aliás, nem sei para quê esta conversa...
- E quem é que há-de saber? Irra que às vezes és mesmo parva!

07 outubro 2006

Azul clarinho

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Sento-me à espera,

talvez hoje venham visitar-me, abro a janela. Nunca sei a hora certa em que irão subir-me ao peito, depois ao cérebro, à boca, às mãos, ao corpo inteiro que levo à letra e que derramo em lençol branco. Nunca sei se vêm certas, pertinentes, necessárias, se se articulam com o que sinto ou se é aleatória a forma como se atiram, se me procuram ou se tenho de encontrá-las, uma a uma, num mar de léxico infinito. A verdade é que não vivo sem elas e que passo o tempo à espera que me cruzem a janela para as poder jorrar dos dedos, pequeníssimos soluços de cor negra eclodindo aos solavancos, pequeníssimos rumores que ponho em fila um após outro a tentar que o horizonte não se esgote na parede azul da sala, pequenos nadas, afinal, que dependem de uma ordem para dizerem qualquer coisa.
Sento-me à espera da escrita. Acredito que regresse, se não hoje um destes dias, ao meu corpo, às minhas mãos, à minha boca.

06 outubro 2006

É estranho

estar de novo aqui. Como se, de alguma forma, já não pudesse pertencer a nada disto.

Não as vou buscar

a ti, as palavras, nem mesmo as que parecem terem sido em tua honra, não existe essa empatia entre nós dois. Falo em nós, depois reparo que só eu própria estou presente na palavra
nós o quê?
que não há dois pares de mãos, um corpo sobreposto ao outro, uma conversa a duas vozes, nada a dobrar para além do horizonte.

É claro

que mentes, como sempre.

Volto

sem máscaras e sem plasma, a pele à vista de quem passa, a carne à mostra. Talvez porque tenham vindo à tona os gestos que afinal procuro e que não são, já não são, poses de espelho. Já não temo pelo reflexo das palavras que projecto no néon. São o que são, são como são, não temo o eco, as distorções, as várias vozes que me habitam, deixo-as estar. Não temo o vácuo e não me sinto perseguida pelo sentido que preciso de fazer: posso não fazer nenhum, escrever à mesma, ser quem quiser, o que quiser, alheia aos outros e a mim própria, presente ou não naquilo que digo, é disso mesmo que se trata, como sempre, de exercício. Porque, se páro, os dedos queixam-se e eu não gosto que se queixem, dói-me o peito e é escusado. O resto é pouco, é-me indiferente. Da mesma forma, o que aqui fica não é para a posteridade, vale o que vale, e assim já chega: justifica-se o regresso.

04 julho 2006

Não te faço rir,

eu sei, há muito tempo que perdi a expressão alargada do meu rosto, e hoje limito-me a viver dos poucos traços que ainda guardo. Pequenos esgares que nem sequer são de alegria, olhos em arco, as faces pálidas caídas, a solidão que em frente ao espelho me incomoda. E, no entanto, sou a mesma. Sempre a mesma. Procuro-me em outras, mas não passa de ilusão. Sou sempre a mesma. A mesma pele que me serve serve às outras. Nenhuma de nós é plasma, temos nome, o mesmo nome para todas. Da substância, porém, não sei dizer. Não somos todas da mesma.

Desde que vi

a cara dela numa revista duvidosa que a sua escrita deixou de ter aquele impacto. Hoje, considero-a até banal, sem importância, uma escrita construída de rajada, mas nem por isso genuína.
Há muito tempo que não mostro a minha cara
duvidosa?
na revista. E, no entanto, a minha escrita já não tem aquele impacto. Considero-a até banal, sem importância, construída sobre a ânsia de dizer, e afinal amordaçada.

É claro

que ainda posso permanecer. Mudar de ideias, fazer-te rir. Boiar outra vez no néon, outra vez ser de plasma resguardando a pele em corpo seguro, estatelar-me no écran ao comprido, deitar-me, dormir, escrever sem pensar, inventar personagens que depois posso enfiar outra vez num hospital de malucos, convidar o Miguel Bombarda para beber um copo de letras comigo, sair com o Gonçalo, telefonar à Joana. Passo depressas pelas estações, mas posso fazê-las durar nos meus dedos para que se derramem nas teclas as vezes que forem precisas. Ou, simplesmente, as que me apetecer. E a ti? Depois disto tudo, continua a apetecer-te a leveza e o riso? Se quiseres, posso escrever.

Qualquer coisa

mas leve. Das que te fazem rir, foi o que disseste? Sabes, não sei se ainda sei escrever coisas dessas, ou sequer se me apetece escrever coisas dessas, coisas que te façam rir, que te deixem leve ou com vontade de ler-me. Passou tanto tempo, sobretudo mudou tanta coisa, e tu sabes como sou rápida a atravessar as estações, como passo a correr de umas para as outras, como me canso sempre que me demoro mais do que a conta, aborrecem-me as repetições, as reposições, o resgatar das palavras que já foram escritas. Além disso, cada vez me convenço mais de que os blogs
estás muito enganada, isto não é um blog!
cada vez me convenço mais de que os blogs mais não são do que espelhos onde queremos que os outros nos vejam maiores do que somos, onde espetamos com as nossas vaidades e onde pômos o ego a boiar em néon para que os outros nos venham «espiar» e, idealmente, admirar, bajular, encher-nos as caixas de comentários com senso comum e considerações miseráveis. Pois foi, é verdade, também eu caí nessa asneira, também eu cedi à tentação de pôr a escrita a boiar no néon, tipo isca, tipo deixa lá ver quem é que aparece e o que é que diz, pode ser que haja para aí alguém interessante, alguém para quem as palavras façam mais do que só o sentido que lhes quero dar, uma espécie de eco, ou de retorno, talvez até fosse mais o retorno aquilo que esperava, mas que disparate, como se as presenças do lado de lá me garantissem alguma coisa, como se fosse preciso andar a medir o impacto das minhas metáforas pela bitola dos outros.
Sim, divertia-me, durante uns meses divertia-me à brava, sobretudo à custa de uma ou outra ressabiada, isso foi giro, medir até que ponto o néon se presta ao verter de azedumes, de invejas, de raivas, mas tudo isso, ultimamente, foi ficando para trás. A minha vidinha, o escanzelado de merda, os comentários anónimos, o palhaço singelo, o plasma e a pele, a minha mãe... Não digo que estejam mortos e enterrados, mas olho para eles e vejo-os tão pálidos, os contornos do que quis que fossem esvaídos, nenhuma coisa que me pareça importante ir recuperar. Desculpa, por isso, se não te faço rir, se são de vidro - e de outras substâncias anónimas - as palavras que tenho guardadas dentro de mim. E que já não partilho.

Escreve aí qualquer coisa

mas leve, do género daquelas que costumavas escrever quando este blog
isto não é um blog!
nos fazia rir.

04 maio 2006

Ao ritmo a que se sucedem

os dias deixam de fazer sentido: não os uso, não os gasto, não os vivo.

03 maio 2006

Fomos ganhando a distância

dos corpos primeiro, cada um a cada dia mais longe do outro, abrindo os braços, as mãos e os olhos na direcção oposta do outro, procurando o lugar onde o outro não estava, onde não podia chegar ou voltar a caber, onde o tamanho de dois se tornava risível e cada vez mais desproporcional ao amor. Uma vez estabelecidos os territórios da pele e as respectivas fronteiras, alargámos o intervalo entre as almas até ao abismo que vês. Agora, para me tocares ou, simplesmente, para me quereres outra vez, tens de atirar-te e cair. Provavelmente, morrer.

A seguir

morro-te eu. Devagarinho, prometo. Quando acabar, guardo-te perto dos búzios - a não ser que me digas que preferes os lírios de cera, as orquídeas, as coroas de cemitério ou outro disparate qualquer das mortes a sério.

Morre-me

devagarinho. Assim todos os dias te posso amar menos.

Insiste

que o tempo da colheita há-de chegar finalmente. Repara como o verão se aproxima, sente-lhe a arte, se fores capaz toma-lhe o pulso, segura-o. Pouco importa se são frutos ou almas o que vais trazer do pomar, se é voz se silêncio o que te nasce no peito, doendo. Sobretudo, não contes as ilusões que te distraem desde o outono passado. Enquanto não davas por isso, as estações amadureceram -te e envelheceste . Não é motivo para alarme, não são as rugas que te vão tolher os dedos para já, mas estamos em Maio e urge usá-los antes que caiam das árvores - ou que apodreças.

A voz dele

não devoluta, sem ser rouca e sem estar presa, nenhum arquétipo de som desabando atrás do vento, nenhum pranto de vertigem, nenhum grito de vazante, nenhum halo de precipício, nenhum trago de maré, nenhum espasmo de veneno. A voz dele no timbre manso e eterno das estações que o amor devolve em dobro aos heróis das grandes causas, a viola recuperada, o piano recomposto, os olhos verdes pela frincha entreaberta das palavras que ficaram por reter e as flores já recuperadas, afinal não tinham sede, não chegaram a murchar, eram brancas, eram doces e a voz dele
até que a morte nos separe
repetindo a promessa e o amor para além do tempo e da tragédia.

Que diferença faz

afinal? Que sentido? Aberta ou fechada, a minha janela dá para um imenso vazio, nenhuma paisagem à frente dos olhos que valha a pena reter, considerar, repetir.

28 abril 2006

Era muito mais divertido

quando ficava à janela a ver-te passar, ou mesmo quando ficava do lado de dentro, ao teu lado, e te seguia à medida que ias jorrando dos dedos os teus disparates, alguns faziam-me rir, outros nem tanto, mas sempre era melhor do que agora, eu ao teu lado e tu quieta, muito mais quieta, muito mais triste, eu do lado de dentro das tuas mãos e a vê-las tremer, desistir. Ou então à janela. Eu amparando o teu corpo dobrado, as portadas fechadas, a rua onde já não passa ninguém, talvez me morras nos braços um destes dias e tenha de ir enterrar-te junto dos pássaros, lembras-te? Talvez um destes dias te agarre nas mãos e repare que já não sabem voar. Poderei nessa altura passar outra vez para o teu lado de dentro e de novo abrir a janela, quem sabe sorrir, ver passar as pessoas, as letras, um rumor de palavras calcorreando os passeios e a memória da tua voz seguindo-lhe o rasto, ou não fosse a morte a metáfora perfeita dos dias que ainda nos faltam cumprir.

Como se recomeçar

fosse voltar ao princípio e não é. Como se a escrita fosse tangível daqui e eu debruçada a vê-la cair sem poder fazer nada ou mexer-me. Eu entre a inércia e o espanto a medir o abismo que de há uns anos para cá me separou das palavras
para sempre
entre o tédio e o pranto a ajuizar a distância da pele à metáfora e é grande, é imensa, é brutal e estou tão cansada. Eu a ser empurrada e a reparar que é por isso, é só por isso, que me mantenho em andamento embora não saiba lá muito bem para onde vou nem porquê e uma pilha de livros à espera que os meus dedos se excedam e escrevam, enfim, o que lhes peço. Mas nunca escrevem, nunca se excedem, há anos que os tenho parados nas mãos, já quase não fazem parte de nada, os meus dedos, e às vezes ficam dormentes. Como se recomeçar fosse, de alguma forma, o sol de vermelho no limbo, o horizonte e a luz e o mundo contagiados de sangue e não é, nunca foi. Não é suposto doer e parece que é disso que não me convenço, não é suposto doer. Não é o sangue que vejo nascer todos os dias da minha janela, pois não.

Sophia

tantos meses depois e ainda me viro quando alguém diz o meu nome
Sophia?
ou quando o escrevo
Sophia
como se fosse de facto o meu nome, e não é.

Num dia como outro qualquer

de calor, mas muitos anos depois
não exageres, foram só alguns meses
meses, ok, num dia como outro qualquer de calor mas muitos meses depois, quantos não sei, não os conto, prefiro não contar o tempo que não posso reter, revejo-me ao espelho. É o mesmo rectângulo, é o mesmo néon, o ecrã tal e qual como o deixei há meses atrás, pálido, o mesmo template,
ia dizer : a mesma merda de sempre
mas ainda não decidi se me quero ver tal e qual como sou
a mesma de sempre
ou se em vez disso me invento,
outra vez
se me mostro ou me escondo atrás da pele que não tenho,
plasma, não era
se me deixo levar pelo chumbo das letras, pelo barulho dos tiros a sair-me a custo dos dedos
das teclas
pelo barulho das teclas a sair-me às golfadas do peito ou se, em vez disso, me deito quieta e à sombra à hora da sesta ou, ainda, se sonho.
Por enquanto
e é tudo
e é muito, sei que num dia como outro qualquer de calor me acendo à espera que a escrita me traga o alento que não encontro na vida e é tudo
e é muito
até porque já se passou muito tempo e há coisas de que já não me lembro, coisas que preferia esquecer, muitas coisas das quais ando desesperadamente à procura para depois lhes poder chamar nomes, acho que deve ser isso.