14 dezembro 2006

Estou, então,

na Caparica. Há dias o mar engoliu às golfadas a areia da praia, espreito-o de um promontório de pedras e a paisagem é triste, mais triste ainda por estar com a minha mãe fechada na cadência das ondas, para cá e para lá, para cá e para lá, para cá e para lá
- Não tarda e estou enjoada,
diz ela.
Costumava passar férias na Caparica quando era miúda e hoje arrepiam-me os excessos que tornaram a pequena vila de pescadores numa anormalidade desconcertante de prédios. Chegámos a ter lá uma casa, com um pinheiro manso. Íamos de comboiozinho até à Fonte da Telha, a minha mãe era muito mais magra e muito mais divertida, em vez de nos fecharmos as duas na cadência das ondas, saltávamos para dentro da espuma, ela usava uma touca e nunca molhava os cabelos, apanhávamos algas, conquilhas, escaldões, era bom.
- Eras muito mais querida
diz ela.
Mas nem sequer é essa a questão. Não somos mais queridas só porque somos mais pequeninas ou mais inocentes, o segredo estava na mansidão do pinheiro, na sua copa redonda e frondosa - o ventre da minha mãe sempre foi liso, os braços não davam sombra
- És uma ingrata!
A grande questão é quando nos pômos a dividir: de um lado a mãe, do outro a pessoa, e nos partimos ao meio. Não há Freud que valha! Ali está ela, fechada nas ondas comigo, evocando o ventre de pinheiro manso onde me pôs a crescer e o mar liso como uma pedra. Aqui estou eu, com vontade outra vez de a morder e de a levar para o hospital de malucos.
- Nunca deste importância ao meu sacrifício!
Pois não. É precisamente o que mais me apavora, essa ideia de se ter sacrificado por mim e de agora querer que lhe pague com juros.
- Já chega. Vamos embora.

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