05 dezembro 2007

Mas é claro que na fase em que estou

acho que já nem isso sei, já nem sequer sei pintar mapas. As virgens saem-me mal, angustio-me com os capricórnios, as setas dos sagitários parecem-me todas iguais. apenas os caranguejos, os leões, as balanças me dão algum gozo, mas continuo sem saber como encho o círculo do meio ou se não o encho de todo, viro a sala ao contrário e espalho tudo no chão, pelo menos escrever dá menos nas vistas, colo e descolo apenas com teclas sem ter de andar de rabo para o ar à procura do tubo de purpurinas com que quero enfeitar os dois peixes.
os teus sairam-me bem, os teus peixes estão lindos, fazem parte da colecção de artefactos das férias na beira, em verde e cor-de-laranja, o fundo é vermelho-morango.
ou seja, da mesmíssima cor das estantes que vamos pintar e que esperam por nós há que tempos, coitadas, devem estar cheias de pó, se calhar vai ser preciso a E. voltar a esfregar a carpete, é pouco provável que a tua mãe nos empreste o aspirador outra vez,
olha quem
(isto foste tu que disseste)
portanto é assim. pintei mais dois mapas, um ainda não acabei, na segunda vem cá a MJCF almoçar para os ver. a tal que os quer para o livro, e talvez ceda afinal.
pode ser o princípio.

Voltei aos mapas

e usei fundos de cor.
Fiz o teu.
Está maravilhoso.

03 dezembro 2007

Se soubessem

de todas as vezes que ensaio, de todas as vezes que tento, que apago, dos dias em que não escrevo, do medo. se pudessem provar das palavras depois de as terem cuspido do peito veriam como não sabem a nada, apenas se dobram, é tudo, curvadas sobre si próprias, tristes e mancas, perseguem-se e pronto, perseguem-me, faltam-me, não sobra mais nada.

Sem perder tempo

tiro-a de onde estiver, já não me lembro onde foi que a deixei da última vez, trago-a para dentro, digo-lhe
sente-se aqui
ela senta-se
acendo-lhe a luz.
Não quer que lhe conte uma história?
faz que sim com a cabeça.
Pego num livro, um qualquer
pode ser este?
e leio-lhe em voz alta.
Pouquíssimo tempo depois reparo que adormece, aconchego-lhe a manta, volto a pôr o livro na estante, depois fico sentada a olhá-la. Só então me apercebo de que é a minha mãe de verdade e não a outra que invento e que é por isso que dorme, tão calma, ao meu lado.
Acho que vou acordá-la e morder-lhe.
É uma farsa poupar a carne às palavras.

Um dia passa-me e pronto

volto a ser dona de mim, tenho-me em conta, extravazo, em vez do fundo do fundo subo aos cumes do céu e armo-me em deusa, pinto-me, enfeito-me, já não me dói nada, recupero o poder, reparo que o dom está intacto e que afinal posso escrever, é tão simples.

E tu

que de vez em quando aqui passas
- desculpa não termos tomado chá noutro dia mas estava cansada, acho que já era a espuma, já era o poço a comer-me, o logro, o engano, isso tudo que sabes que sobe por mim, ou que desce, que me leva cada vez para mais longe de tudo
tu, que de vez em quando aqui passas e que te afliges
- eu sei que te afliges
quando me vês
- quando me lês
quando escrevo estas coisas que assustam, assustam-me, sim, assustam-me imenso e tu sabes
- como é que não enlouqueces?
quando os monstros vêm espreitar-me ou mais do que isso
- sabes que ultimamente têm querido levar-me?
quando me puxam, me sugam, me rasgam por dentro e me esvaio, não fico capaz de mais nada senão destes disparos de mentira
- palavras!
que não atingem ninguém, que não ferem, não matam
- afinal não sou lá grande espingarda a escrever
tudo mentira.
Ainda assim, quando vieres, quando voltares a passar por aqui, quando sentires o estômago às voltas com cada palavra que cuspo, quando deres por ti a pensar
- mas o que é que se passa?
protege-te.
Mantém-te à tona do poço e não tentes espreitar lá para dentro. No fundo do fundo estou eu, disposta a desistir de salvar-me, não me perguntes
- porquê?
Tomamos chá noutro dia, está bem?

Ando ao engano

a achar-me dona de mim quando afinal nada em mim me pertence
de facto.
Ando louca ao engano, ao encontro das coisas, procuro-me nos improváveis, nos menos certos, vou sempre para o lado onde nada me espera, a direcção está errada e eu erro. Erro à procura do mundo que julgava caber-me nas mãos, um manso volume de azul que contive nos dedos durante anos a fio mas eis que o azul se dilui, molha-me o colo e os olhos, talvez chore mais tarde, isso sim é provável.
Por ora os olhos estão secos, nem sequer ardem, o mundo caiu-me das mãos, tenho apenas espuma nos dedos.
Ando ao engano a pensar que são letras, a achar que domino as palavras, que tenho uma história e não tenho, muito menos um jeito ou um dom para contar o que seja, é tudo um logro e eu
mas que parva que eu sou
cedendo ao engano.
Ando em círculos mas nenhum mar me circunda, é só a espuma que sobe por mim, rasa-me os olhos
não choro
depois desce em espiral e leva-me o folêgo, provavelmente estou morta e ainda não me dei conta, ando ao engano e é tudo, não tarda muito e descubro que é tarde e que estou finalmente no fundo do poço.
Mas nem sequer isso lamento.