29 junho 2005

Bom,

então foi assim. Se bem se lembram, houve um dia em que ela, a gaja de carne, agarrou no saco comigo lá dentro feita em papas, literalmente, e o atirou para o contentor sem piedade nem complacência (a pena que eu tenho de não poder recuperar tudo o que foi escrito nesse outro conta-me tudo, era muito mais fácil apanhar o fio à meada, mas pronto!, paciência...) Ao princípio, o cheiro nauseabundo deu-me vontade de vomitar, mas depois percebi que, mesmo que o quisesse fazer, não tinha órgãos capazes de dar vazão àquela náusea e acalmei-me. Respirei fundo, pensei que, se Deus quisesse, ia conseguir sair dali para fora e encontrar alguém compreensivo que me salvasse e comecei a rezar. A certa altura, ouvi o barulho do camião que vinha fazer a recolha do lixo e resolvi dar tudo por tudo. Com as forças que me sobravam, agitei-me dentro do saco - tarefa díficil para uma pessoa normal, quanto mais para uma amálgama de plasma! Mexia-me de um lado para o outro e imagino que, quem resolvesse espreitar para dentro do saco, achasse que eu era uma alforreca nojenta e pegajosa, daquelas que nos deixam a pele cheia de borbulhas quando lhes tocamos. E, no entanto, não foi isso que aconteceu. Houve, de facto, alguém - um dos homens do lixo, quem mais?! - que espreitou para dentro do saco, calculo que assustado com os seus (meus) movimentos, e que era tão esperto que percebeu logo o que se estava a passar
eh pá! está aqui uma gaja!
disse ele. Como é que ele percebeu tão rapidamente que eu tinha sido uma gaja, não sei dizer. Mas sei que os outros dois vieram logo espreitar também para dentro do saco e que concordaram com ele.
pois está! está aqui uma gaja em muito mau estado!
disseram eles. Percebi que estava safa e só me apeteceu ter outra vez braços e boca para lhes dar palmadinhas nas costas e louvar-lhes a inteligência, mas, até chegar a esse ponto, ainda ia ter de passar por muitas coisas. Bom, o que interessa é que os homens do lixo pegaram em mim, ou no saco, com desvelo (foi desvelo, sim, lembro-me bem) e andaram o resto da noite às voltas comigo no colo, enquanto faziam a recolha do resto do lixo pela cidade. No fim do turno, foi um sarilho para decidir qual deles é que ficava comigo. Acabou por ser o primeiro, o que me tinha encontrado, alegando que tinha um cunhado que trabalhava numa fábrica de plásticos que, de certezinha, ia poder ajudar-me...

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