03 julho 2005

A bonomia dos seus traços

e as asas que benignamente lhe recortam a figura fazem dele o meu anjo de eleição. Sei que me guarda atentamente desde o dia em que nasci, que me protege a própria sombra, não vá a morte entrar por ela e subir-me ao coração e seria complicado retomar-lhe as pulsações depois do susto, e que me vela, sentado aos pés da minha cama durante as noites em que o vento insiste em sacudir-me os ossos a propósito de nada. Já quando o céu está mais ameno, sem sinais de tempestade, instala-se à cabeceira e sinto que a aura me ilumina o sono. Não é um anjo loiro, como seria de supor, ou como todos imaginam, e sempre o achei feito à medida da atenção que dedico a estas coisas. Por isso tive, e desde cedo, um amplo lugar de fé onde ele sabiamente se instalou para cumprir a protecção que me dedica. E assim podemos respeitar-nos um ao outro. Porque não nos invadimos, não nos desacreditamos, e só nos vemos ao relento, quando vamos de mãos dadas passear pelos pinhais da minha infância, seguindo as estrelas como se fossem caminhos, e ele me fala do céu. Respondo-lhe sempre em terra - é a minha condição - mas nem assim ele me nega ou me suprime o eterno azul de Deus e a conversa, que vamos tecendo aos poucos, cada um na sua língua, permite-me acrescentar uma infinita dimensão à minha vida. Já a ele é mais a pele o que o fascina, a minha pele onde gosta de pousar e de sorrir e que, segundo diz, o faz sentir-se menos anjo e mais humano e lhe permite acumular todos os gestos transitórios através dos quais me exprimo. Sei que vamos ficar juntos para sempre, ainda que para sempre, para mim que sou daqui, pareça imenso. Mas tenho vindo, com o tempo, a perceber que a eternidade é como o mar: subimos para cima dela e logo se derrama em nós, serenamente afastando-nos das margens e das praias e da pele e das pessoas para nos envolver em água. Ficamos então sem peso, benignamente abrindo os braços que não temos e vogando entre arquipélagos. Não somos anjos, mas a luz clara de Deus persiste em nós. E nós nela. Eternamente.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não há palavras... escreves muito bem!