27 julho 2005

Hoje passei pelo teu livro

ia com pressa
não, minto
ia com medo
hoje passei pelo teu livro, ia com medo e por isso entrei sem pressa, dedo ante dedo, olhos de esguelha evitando a tua ausência, um seguindo o outro a custo para poderem prevenir o desalento desfasados que dói menos, por fim os dois semi-abertos e vogando no papel à procura das palavras que alinhavas pelo tom da tua voz e que agora, agora o quê?
agora de novo o medo
sucumbiam ao silêncio, à tua morte
pensei eu
que os teus poemas se teriam diluído numa imensa mancha de água
(chorei tanto)
há tanto tempo que chorava que pensei, juro que pensei, que a tua vida não rimava com mais nada e que morrer, virada a última página, era o epílogo da nossa história de amor. Qual não foi por isso o espanto quando te encontrei intacto, tão vivo ainda que cheguei a sentir-te o coração fora da métrica a bater descompassado, o teu coração soberbo
não não era uma metáfora
eras tu, senti-te o pulso, o alvoroço, a valentia, os teus passos percorrendo a distância que existia entre o papel e os meus braços, os teus versos um a um desenhando a trajectória do meu colo, caindo nele
cabendo em mim
as palavras como sopros e eras tu a respirar, cada som, cada palavra, cada rima eras tu a respirar, não estavas morto, o teu hálito a entrar nos meus ouvidos e agitando os meus cabelos, os teus beijos
eram mornos, eram longos
tal e qual como me lembro a rasar a minha boca, a redundância do teu riso a repetir-me uma e outra e outra vez o tamanho enorme e amplo da alegria, o pleonasmo
faz-me feliz a felicidade
rumando à estrofe imprecisa do meu peito e assim fui percorrendo, já muito menos a custo
já muito menos a medo
dedo ante dedo, olhos abertos, os dois agora atrás de ti, presos a ti, fixos nos teus, os poemas que alinhavas pelo timbre do amor e que rimam, afinal, com a tua vida e fecho o livro, fecho os olhos, fecho o medo. Acabo de perceber que sou capaz de te deter, de te agarrar, de me prender a essa tua engenhosa perfeição de sonhador que transforma a tua morte e a tua ausência, pelo dom das palavras que deixaste, num amor vivo e concreto. Que o meu luto, a minha dor, as manchas de água do meu pranto são em honra do comum mortal que foste, mas que o epílogo do amor
do nosso amor
é o teu riso de poeta, o teu coração soberbo, os teus versos desenhando cada um a trajectória do meu colo, caindo nele, cabendo em mim,
não tenho medo.

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