22 julho 2005
Livra-te disso,
livra-te disso e quanto mais depressa melhor que até eu me canso quando te olho e te percebo curvada, dobrada sobre ti própria, faz-me impressão, o que queres que te diga?, faz, faz-me impressão, dá-me uma espécie de medo achar que podes cair enquanto te espreitas no fundo do rio que sei muito bem que te espreitas, há dias que ando a espiar-te enquanto te espreitas sabias, os teus olhos rompem a água com fúria que eu sei, atiram-se ao espelho de lodo onde já não reconheces ninguém e puxam-lhe o brilho não é, como se ao fim deste tempo o riso e o espanto subissem à tona, clarividentes, ilesos, como se ao fim deste tempo pudesses ser aquela menina pequena que o Mondego acolhia nas pedras não era, não querias, aquela menina pequena, feliz, preferida, perfeita, como se as margens não tivessem há séculos reduzido os teus sonhos a um murmulho de pingos grosseiros e a chuva pudesse, e fosse ainda imagina, a banda alegre na praça da aldeia inundando o coreto de música, és parva, as voltas que o mundo deu entretanto, a quantidade de areia que roubaram às margens, as merdas que despejaram lá dentro não viste, manchas opacas e verdes que engolem a água e a cospem, com espuma ao canto das pedras e sangue nas guerlas da tua infância, percebes, a tua infância que é um lugar de metáforas e pronto, deixa-a, livra-te dela que ninguém mais a habita, nem tu, nem eu, nem as tias põe-te direita, não olhes para trás, não olhes para baixo mas em frente e para cima, ali, no meio do azul estás a ver, aquela nesga de céu que se abre para ti, ali, ali, tens de olhar bem, ali através daquela estreita frincha de luz vês agora, é para lá que os olhos te chamam, para o alto e por isso te digo livra-te disso e despega-os do fundo do rio que me cansas, cansas-me tanto!
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