01 julho 2005

Depois do rotundíssimo falhanço

do cunhado, permaneci naquela minha triste condição de amálgama enfiada num armário bolorento em casa do homem do lixo. De vez em quando, ele visitava-me. Tirava-me para fora, abria o saco, e tentava consolar-me
não tarda nada e estás outra vez nos trinques, pá!
prometia-me em surdina
vais ver, vais ficar linda! boazona comó milho
e arrumava-me outra vez, depois de fechar o saco, não sei bem se com medo que eu fugisse ou se do quê.
Um dia, numa quinta-feira à tarde, tirou-me do armário e esclareceu-me
é hoje, miúda, é hoje que te vamos pôr nos trinques!
e saiu comigo porta fora, a balançar-me para trás e para a frente como se dentro do saco não estivesse a boazona com quem sabia que sonhava há muitas noites, mas uma espécie de alforreca peganhenta e azulada.
Ao fim de meia hora, mais ou menos, entrámos numa loja esconsa e mal iluminada. Seguro do que fazia, pôs-me em cima do balcão e ordenou ao funcionário
enche-me aqui a miúda, pá!
O funcionário, um tipo pálido e suado com borbulhas purulentas, revirou-me várias vezes, olhou-me primeiro de um lado, olhou-me depois do outro, limpou o suor da testa e coçou uma borbulha e, mais pálido ainda do que estava quando entrámos, perguntou
o amigo quer que eu lhe encha esta alforreca, é isso?!
não, pá, não foi isso que eu disse!
nesse caso, foi o quê?
eu pedi-te que me enchesse a miúda!
ah! então isto é uma miúda...
e tornou a mirar-me e a revirar-me
uma gaja! quem diria?! posso abrir?
e, enojado, olhou-me primeiro de um lado, olhou-me depois do outro e apalpou-me sem pudor
que rica gaja! onde é que a foi desencantar?!
pá, isso agora não interessa! o que eu quero é que a enchas!
Nessa altura percebi onde é que estava. Sem querer, o funcionário, ao tocar-me sem pudor, tinha-me posto um dos olhos rente ao plástico e, como este era transparente, dava para ver o ambiente à minha volta. E vi então, penduradas na parede, uma série de bonecas insufláveis de sutiã e cuecas e com muito mau aspecto. Fiquei de tal maneira amargurada que, por momentos, desejei permanecer uma alforreca para sempre, mas era tarde demais. Com cuidado, e muito mais pudor que o outro, o homem do lixo estava a tirar-me do saco e a repetir num tom zangado
não ouviste o que é que eu disse? quero que a enchas, pá, assim como àquelas na parede!
Depois de me remexerem toda, de me virarem para cima e para baixo, de me voltarem para a esquerda e depois para a direita e de eu estar quase a escorregar pelo balcão, o funcionário concluiu
lamento, mas não dá!
Para mim foi um alívio, mas o homem do lixo não se deu por satisfeito e voltou a repetir, separando as palavras
eu disse que quero que tu enchas essa gaja, pá! queres que fale mais devagar?!
ó amigo! mas a gaja não tem pipo! como é que quer que eu a encha?!
Sem mais conversas desta vez, voltei para dentro do saco. Confesso que preferia assim! Uma gaja como eu lá podia ter um pipo!
era só o que faltava!
disse o homem
era só o que faltava...
pensei eu
e, passado meia hora, lá recolhi ao armário, ainda a pensar no pipo
ora, ora! era só o que faltava! uma gaja como eu...

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