do cunhado, permaneci naquela minha triste condição de amálgama enfiada num armário bolorento em casa do homem do lixo. De vez em quando, ele visitava-me. Tirava-me para fora, abria o saco, e tentava consolar-me
não tarda nada e estás outra vez nos trinques, pá!
prometia-me em surdina
vais ver, vais ficar linda! boazona comó milho
e arrumava-me outra vez, depois de fechar o saco, não sei bem se com medo que eu fugisse ou se do quê.
Um dia, numa quinta-feira à tarde, tirou-me do armário e esclareceu-me
é hoje, miúda, é hoje que te vamos pôr nos trinques!
e saiu comigo porta fora, a balançar-me para trás e para a frente como se dentro do saco não estivesse a boazona com quem sabia que sonhava há muitas noites, mas uma espécie de alforreca peganhenta e azulada.
Ao fim de meia hora, mais ou menos, entrámos numa loja esconsa e mal iluminada. Seguro do que fazia, pôs-me em cima do balcão e ordenou ao funcionário
enche-me aqui a miúda, pá!
O funcionário, um tipo pálido e suado com borbulhas purulentas, revirou-me várias vezes, olhou-me primeiro de um lado, olhou-me depois do outro, limpou o suor da testa e coçou uma borbulha e, mais pálido ainda do que estava quando entrámos, perguntou
o amigo quer que eu lhe encha esta alforreca, é isso?!
não, pá, não foi isso que eu disse!
nesse caso, foi o quê?
eu pedi-te que me enchesse a miúda!
ah! então isto é uma miúda...
e tornou a mirar-me e a revirar-me
uma gaja! quem diria?! posso abrir?
e, enojado, olhou-me primeiro de um lado, olhou-me depois do outro e apalpou-me sem pudor
que rica gaja! onde é que a foi desencantar?!
pá, isso agora não interessa! o que eu quero é que a enchas!
Nessa altura percebi onde é que estava. Sem querer, o funcionário, ao tocar-me sem pudor, tinha-me posto um dos olhos rente ao plástico e, como este era transparente, dava para ver o ambiente à minha volta. E vi então, penduradas na parede, uma série de bonecas insufláveis de sutiã e cuecas e com muito mau aspecto. Fiquei de tal maneira amargurada que, por momentos, desejei permanecer uma alforreca para sempre, mas era tarde demais. Com cuidado, e muito mais pudor que o outro, o homem do lixo estava a tirar-me do saco e a repetir num tom zangado
não ouviste o que é que eu disse? quero que a enchas, pá, assim como àquelas na parede!
Depois de me remexerem toda, de me virarem para cima e para baixo, de me voltarem para a esquerda e depois para a direita e de eu estar quase a escorregar pelo balcão, o funcionário concluiu
lamento, mas não dá!
Para mim foi um alívio, mas o homem do lixo não se deu por satisfeito e voltou a repetir, separando as palavras
eu disse que quero que tu enchas essa gaja, pá! queres que fale mais devagar?!
ó amigo! mas a gaja não tem pipo! como é que quer que eu a encha?!
Sem mais conversas desta vez, voltei para dentro do saco. Confesso que preferia assim! Uma gaja como eu lá podia ter um pipo!
era só o que faltava!
disse o homem
era só o que faltava...
pensei eu
e, passado meia hora, lá recolhi ao armário, ainda a pensar no pipo
ora, ora! era só o que faltava! uma gaja como eu...
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