que o ar se adensa e me dilata, tão espesso que me custa atravessá-lo. As tias velam para que o sol não se acenda no meu peito que, ardido de saudades, tenta esconjurar a morte. A sesta é sempre um labirinto onde julgo achar o sono para logo ele se perder, para me perder, me confundir, abrir-me os olhos, devolver-me ao presente que acompanho com o rumor da minha infância. Estranho vício este de achar que há anos fomos perfeitos e que as coisas e os lugares e os próprios sentimentos, que a distância consagrou em cenários impolutos, não se acercaram de nós para adulterar o perfil da felicidade. Acreditar que as paisagens e os poentes e os pinhais são muito mais do que estilhaços de memória à flor da pele, muito mais do que fragmentos impalpáveis de matéria. Ter a certeza, isso é que é estranho, que a perfeição conserva cores, preserva aromas, retém sons, ampara sonhos e contraria o humor das pulsações, bate-pára bate-pára bate-pára, batendo sempre e para sempre ao ritmo certo e seguro dos corações.
À hora do passado é de calor que me rodeio. É com ele que me adenso e me dilato, é a sesta que atravesso quando a morte vem espreitar-me, as saudades que esconjuro quando me sobem ao peito, e me estilhaçam. Cinco anos e o sol raiando a tarde através dos véus das fadas, o vício da felicidade, a perfeição soando exacta, bate-bate bate-bate bate-bate. Trinta e seis e um labirinto num brevíssimo piscar, aquele mesmo onde o sono me fugia para logo me encontrar, onde há mãos que se agarram para depois se desprenderem e os lençóis, com o travo da alfazema nas suas dobras de renda, me espantam os pesadelos. E as tias pacientes e sentadas ao meu lado, vá dorme mais um bocadinho ainda é cedo, as tias vivas, dorme dorme ainda é cedo, brevíssimo o instante que separa a perfeição do ritmo incerto de uma ausência, abro os olhos, fecho os olhos, bate-pára bate-pára bate-pára, oiço o sino que se cala de repente, sinto a noite rente a mim, a subir pelo meu corpo que cresceu sem que lhe tomasse o peso e no escuro perco as referências. Não é a sesta em lume lento que sinto colada aos ossos, bate-pára bate-pára, não é o sol aceso atrás dos véus de popelina, não é o cenário impoluto da infância a soar-me a felicidade, e não era a voz das fadas, vá dorme mais um bocadinho ainda é cedo, bate-pára. Não era porque é tarde, pára, dorme dorme ainda é cedo, é muito tarde, pára-pára pára-pára, passou-se tempo, muito tempo, quanto tempo?, e não há forma, não há meio de esconjurar este travo que me dobra o sono ao meio quando durmo e quando acordo num imenso espaço em branco povoado com memórias que me custa atravessar e onde os corações não batem.
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2 comentários:
não que te admire, estás farta de saber que não, mas há de facto qualquer coisa por trás do que não dizes, qualquer coisa por trás do que não escreves, nunca escreves o que realmente queres pois não, que me arrepia. quando eras pequenina já sonhavas com a morte como agora?
miguel, estou no algarve, querido! hoje tenho uma festa e estou um bocado farta destas maluquices todas. ela que lhe ligue, ok?
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